Morte e Vida

Todas as noites eu sinto nojo do meu corpo. Fingir que gosto, que amo, que me agrada ser vulgarizada, sodomizada, usada para dar aos frustrados que me procuram o que eles conseguem conquistar em casa.
Um cliente me chama neste exato momento. O meu cafetão me diz que devo me aprontar. “Esse é especial” disse ele. Ele chegou! O cliente. Dá nojo a cara do cafajeste de quase um metro e oitenta de altura. Nem a aliança ele tirou. Sem delicadeza alguma, apenas munido de um sorriso cínico ele arranca a minha roupa e me atira na cama, jogando todo o peso do seu corpo em cima do meu.
O canalha fede a cigarro e a álcool. Sinto dores, terríveis. Ele nem ao menos esperou eu estar pronta.
Fui violentada mais uma vez!
Ele passa ali o tempo que necessita, me xingando, batendo, mordendo e com um urro cai, cambaleando exausto para o lado. Sinto muita dor, apenas dor.
O nojento sai com o mesmo sorriso, amarelo, incompleto, sujo, que chegou e sem que dê tempo de me recompor, o meu cafetão vem receber sua metade.
Paro um pouco, penso enquanto me lavo. A dor é aguda, mas não tão profunda quanto a da minha alma, se é que ainda tenho alma.
Batidas à porta! – Cadela! Venha cá!
Mais um cliente. A noite apenas começou.
Dessa vez vejo duas figuras distintas além do meu homem. Um bem mais velho que o primeiro, que meio encolhido e com um olhar muito aflito me olhava enjoado, quase fugindo. Ainda era uma criança, nem corpo de homem tinha. Meu homem sai, mas antes deixa uma recomendação aos dois: Não batam muito nela. Se fizerem isso, cobro mais trinta por cento em cima do combinado.
Medo! Muito medo! O homem mais velho sentou em uma cadeira suja de madeira podre que ficava de lado, próxima a uma janela imunda de vidro quebrado que dava para a rua. Ele mal olhava para mim, mas notei algo muito estranho e sinistro nos olhos daquele cara. Ele a todo o momento observava o mais novo. No instante em que recostei o meu corpo na cama, ainda desarrumada pelo “serviço” anterior, o homem diz ao garoto:
- vamos lá meu amor! Se não fizer com ela, eu faço com você.
Entendi perplexa toda a situação. O medo, a vergonha, o repúdio do garoto. Tudo às claras!
Senti um misto de compaixão e raiva naquele momento. O tempo passa. O garoto cansa.
O mais velho dá uns tapinhas nas costas do mais novo e saem para o inferno que deveriam ir. Choro mais uma vez. Penso naquele homem e me lembro do meu pai, duro, sujo, admirado na rua e odiado em casa.
Só consigo sentir nojo.
Me levanto, ando uns passos até a janela. A vista já deve ter sido bonita um dia, mas hoje, o que tem de menos feio são os travestis que caçam suas vítimas desesperadamente para pagar seus enxertos de silicones e esticamento da cara. Observo aquelas plumas, roupas pequenas, verdadeiras caricaturas ou arremedos de mulheres, com suas cores e tudo o mais. Até me lembro de uma época em que a mamãe me levava ao circo com minha irmã... ”Ei boneca! Mais um para você”.
Viro e vejo um homem gordo e baixo de meia idade, mas o suficiente para ter vergonha do que procurava. Meu homem, fumando um charuto fedorento, daqueles que os boçais se gabam que são cubanos, sai e nem olha para mim.
Observo aquele homem, sentado, com seus ombros baixos e joelhos juntos, olhando fixo para o chão com as suas duas mãos, uma lavando a outra em suor, como se o nervosismo dele jorrasse como um rio de fedor salobro. Como se o nervosismo dele fosse maior que o meu nojo e repúdio!
Tento me aproximar. Toco em seu ombro. Ele pára de tremer. Noto que naquele momento ele abre os seus olhos, mas não olha para mim. O meu sentimento de rejeição toma conta de mim, afinal de contas, sou mulher. Me sinto podre, feia, suja. Nunca um escroto desses me rejeitou dessa forma, sem ao menos olhar nos meus olhos. Persisto. Tiro a minha roupa, fico de pé diante dele, ainda sentado em uma das pontas da cama imunda. Abro as minhas pernas e dou uns dois passos a frente. Fico com os joelhos dele entre minhas pernas. Ele não reage.
Me pergunto o que há de errado comigo, ou com ele. Fico ali, eu, ele e a janela velha. Alguns pensamentos surgem como se o intervalo do mais fino dos ponteiros de relógios demorasse a passar de uma forma assustadora. Várias lembranças, flores, luas, sóis, frutas, afagos, pancadas, estupros, dor... o filme é interrompido. Tenho que trabalhar.
Tento despir o homem gordo. Ao tocar no seu casaco minha mão é imobilizada pelo homem. Noto que este forçava os seus olhos, fechados, sangrando em lágrimas, vermelhos como brasa.
Sinto um medo como nunca sentira antes. Ele aperta o meu pulso, quero rasgar um grito para que o meu homem acabe com o patife, mas não consigo. É como um pesadelo. Pavor, pânico.
O homem, agora olhando em meus olhos, desce sua outra mão até o bolso do casaco, na parte de dentro. Sinto que o fim está próximo. Meus momentos tornam a rodopiar em minha cabeça. Isso explicaria os flashes e lembranças nostálgicas que tenho nesse momento. A mão do homem chega ao seu destino. Fecho os meus olhos quando noto que algo volumoso está sendo retirado do bolso do casaco. É o meu fim!
Aguardo o romper do silencio. Nada!
Tomo coragem e abro os meus olhos. Estou só. Procuro assustada, mas não vejo o homem gordo e baixo. Olho a volta e noto um livro sobre a cama e leio a página marcada com uns versos miúdos riscados à caneta. Choro muito.
Sim, esse foi o momento da minha morte, aos 16 anos de idade. Estuprada, violentada, assassinada, suja. Morri naquela noite. Mas morri apenas para o mundo.
Aquele homem, gordo e baixo, era o que chamam de pastor, que resolveu me apresentar o que de mais importante guardo em minha vida.
Morte e vida.....

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